"Comércio Infame". Crítica de Orlando Ferreira - "Doca", sobre o consumo de cocaína e morfina em Uberaba na década de 1920

Resenha: Thiago Riccioppo 

Orlando Ferreira, o “Doca”, como ficou conhecido - foi um dos personagens mais emblemáticos de Uberaba. De tão polêmico, permanece vivo no imaginário político e social local.

Eclético, era admirador de espiritismo kardecista, ao mesmo tempo em que comparava o marxismo a uma espécie de “comunismo cristão”, que denominava de “comunismo deísta”. Doca foi crítico agressivo da ordem vigente – contestava em suas obras que circularam entre 1912 à década de 1950, o fato do Triângulo Mineiro pertencer a Minas e não a São Paulo. Atacava as oligarquias, as práticas esportivas, especialmente o futebol, a Igreja Católica e a administração pública. Pessoa de raros amigos, não lhe faltou desafetos, pois pouquíssimos passavam incólumes aos seus ataques a sociedade de Uberaba.

Nessas "idas e vindas", Doca fez uma interessante análise no livro “Terra Madrasta: um povo infeliz” sobre o consumo de drogas e a criminalidade em Uberaba nos anos de 1920. Lançando mão de uma publicação de 16 de outubro de 1924, realizada no jornal Lavoura e Comércio, queixava-se do uso indiscriminado de cocaína e morfina, uma vez que estes entorpecentes faziam vítimas, principalmente mulheres, na dependência de vícios, sujeitas ao controle de aliciadores nos prostíbulos da cidade. 
Orlando Ferreira, o "Doca" foi o autor do livro "Terra Madrasta - Um povo infeliz e de outros polêmicos trabalhos sobre a sociedade uberabense. Fonte: APU


Segundo Débora de Souza Silva, a (...) “ideia de que o consumo de drogas é um fenômeno recente demonstra ser um equívoco. Sua presença revelou-se de múltiplas formas em diferentes sociedades ao longo da história do homem”.

Toscano Jr. (2001), compreende que ao longo dos tempos, o uso das drogas está associado não apenas “(..) a medicina e a ciência, mas também a magia, religião, cultura, festa e deleite”. Na perspectiva de Velho (1997, apud Silva), assim “a relação das sociedades humanas com estas substâncias expressa por um lado, uma relação com a natureza e por outro, um processo singular de construção social da realidade. E nenhum grupo social deixou de registrar algum reconhecimento de alterações significativas de percepção e relação com o mundo a sua volta, ainda que por razões variadas”.


Deve-se considerar também que, no final do século XIX e início do século XX, inúmeras drogas que hoje são ilícitas eram reconhecidas pelo uso farmacológico. No Brasil, a Lei nº 4.294 de 14 de julho de 1921, é identificada pela historiografia como a primeira lei de tóxicos do país, consagrando o pressuposto que somente a prescrição médica legitimaria o uso de substâncias vistas como entorpecentes. Contudo, a lei de 1921 estava mais focada na questão do consumo de álcool aos espaços públicos. A vigilância policial não era suficiente para controlar de forma efetiva a venda de entorpecentes em farmácias.


No caso da crítica de Orlando Ferreira, elaborada neste contexto dos anos de 1920, o uso de indiscriminado de cocaína e morfina em Uberaba era recorrente e especialmente agravante entre grupos que estavam à margem daquela sociedade, no caso as prostitutas. Dá-nos uma dimensão de como estes entorpecentes estavam se tornando o um problema social, mesmo que este fenômeno não confrontasse aos interesses daquela sociedade frente a determinados grupos de excluídos.


Leia abaixo, a íntegra das palavras incisivas de Orlando Ferreira que expõem as entranhas do submundo uberabense na década de 1920.

Capa do livro "Terra Madrasta - Um povo Infeliz de Orlando Ferreira. Fonte: APU

Comércio Infame,
por Orlando Ferreira - Doca

As autoridades locais não ligam a menor a importância à saúde pública e permitem criminosamente que pessoas sem alma e sem pudor espalhem a morte por toda parte com a rendosíssima venda de morfina, cocaína, etc. Os chamados vícios elegantes – a toxicomania – numa efervescência incrível, propagaram-se assustadoramente em Uberaba e exercem o seu império absoluto sobre um bando de criaturas infelizes, de uma existência miserável, sem que pessoa alguma venha em auxilio desses seres desgraçados que, com a vida degradante que arrastam, são inúteis para si, para a sua família e para a sociedade. Eu já denunciei publicamente, pela imprensa, um despudorado médico desta cidade, o qual, de longa data, vem exercendo o indecoroso comércio de morfina e cocaína e tem feito inúmeras vítimas. Há muitos outros “vendedores da morte” cujos nomes a polícia conhece, mas polícia hoje em dia só se preocupa seriamente com as perseguições pessoais e com as seções eleitorais; não lhe sobra tempo para mais nada... Por isso o comércio infame continua ativíssimo, sem pagar imposto. E as autoridades locais não dão sinal de si e consentem mesmo que se pratiquem os maiores abusos nesta infeliz terra, sem incomodar nunca esses bandidos que, livremente, às escancaras, exercem uma profissão indecorosíssima e prejudicialíssima à sociedade.

O médico que eu denunciei publicamente não se defendeu, não foi procurado pela polícia, é do tipo mais asqueroso e imundo que vivem em Uberaba: ébrio habitual, cocainomaniaco, sem clínica, atrasadíssimo, mantem um rendez-vous numa rua central, onde explora o comércio infame, onde recebe meretrizes que ali iniciam e satisfazem o vício terrível da toxicomania e, colossalmente desbriando, conduz no bolso uma boceta de rapé, misturado com cocaína, que ele infamemente oferece as pessoas que procuram, as quais, desta forma, ficam iniciadas e sentem os primeiro feitos da tentadora substância. Este bandido, este tipo desprezível e nojento, nunca foi incomodado pela polícia. Pelo contrário, ele vive solto e até insulta as autoridades. Quando alguma autoridade “atrevida” tem a ousadia de processar alguns desses “vendedores da morte” – como aconteceu com o farmacêutico A. O., desta cidade, contra o qual chegou a ser lavrado o auto de flagrante – observa-se imediatamente uma agitação nos arraiais políticos e esses famigerados, malditos e nojentos paredros de bobagem, quais meretrizes devassas, saem a campo para devolver a sua prostituição moral, e, com a maior facilidade, conseguem realizar os seus criminosos intuitos, impedindo a benéfica e saneadora ação policial. Infames e degenerados “políticos”! Devido, portanto, a devassidão política neste fato gravíssimo que eu acabo de apontar, tem-se a lamentar mais um doloroso caso de autoridade exautorada e outro lado de perigosa e desastrada impunidade, isto é, de um lado, vemos hoje um delegado de polícia que queria cumprir o seu dever, sem fé, sem coragem, sem estímulo, e de outro lado, um moço a rir das leitas, a debochar de tudo, e ainda mais encorajado a continuar no comércio infame e a fazer novas vitimas! Está garantido pela lei! Irrisório! Simplesmente irrisório! Há um outro médico aqui, muito religioso, o qual, para os casos sérios de doença, que requerem acurado estudo, trabalho honesto, diagnóstico seguro e inteligente, só encontra uma solução: injeção de morfina! Há várias pessoas que, devido ao procedimento criminoso desse médico sem alma e sem pudor; estão hoje quase perdidas, viciadas no uso terrível dessas substâncias venenosas! Infeliz daquele que cair nas suas garras! É um monstro! Entre as suas vitimas, posso citar o Sr. J. C., residente em Conceição das Alagoas, município de Uberaba, e M.T.A, residente em Goiás.

Há um outro monstro nesta cidade, muito beato, filiado a várias irmandades, passador de nota falsa, que manda vir continuamente grandes quantidades de substâncias tóxicas, que ele vende infamemente a torto e a direito, a varejo e a atacado, auferindo grandes lucros! Ente asqueroso bandido, que devia estar presentemente entre as grades de uma prisão, vive solto e até gosta de pregar moral pelas colunas de um jornaleco de ideias retrógadas e obscurantistas!... Há nesta cidade um outro farmacêutico, tipo desprezível, amarelo, viciado em morfina, o qual, de acordo com o seu sócio, teve a coragem e  infâmia de vender a um tipo também desprezível e muito conhecido no comércio condenado, 100 vidros de cocaína só de uma vez!!!... Quando o referido farmacêutico consultou o seu sócio se podia vender, este farmacêutico  respondeu:

- Ora, todos vendem! Soube disso pelo farmacêutico A. D. que presenciou o fato. Atualmente, é isso uma das melhores especulações em Uberaba, onde abundam por toda parte os depósitos de venenos e pululam os vendedores. Nenhuma autoridade aqui exerce vigilância sobre as farmácias e casas comerciais a fim de impedir a venda de substâncias tóxicas.

A liberdade é absoluta e todos os canalhas podem explorar a fraqueza humana, com o consentimento das autoridades uberabenses!... Em quase todos os inúmeros e incontáveis bordéis da cidade, as meretrizes fazem desbragadamente uso de venenos e compram por preços elevadíssimos, a 20$000 e até a 50$000 a grama, vidros de cocaína das donas desses antros de perversão, vidros estes obtidos nas farmácias a razão de 3$ cada um! Uma dessas cafetinas, Ritinha do Padre, devido a numerosas queixas, chegou a ser processada, mas, muito protegida, continua livre com seu rendoso comércio!...

Sobre a epígrafe “Venda de tóxicos”, o órgão oficial saiu da sua doce comodidade, de seu esplendido modus vivendi que absolutamente não o deixa ser “palmatória de mundo”..., e teve o incomodo (coitadinho!) de publicar o seguinte:

“Está assumindo um aspecto muito grave a venda de tóxicos, cocaína principalmente, nas casas públicas noturnas da cidade, e mesmo por toda a parte, a qualquer hora, nas barbas de quem quer que seja. As vítimas dessa exploração são principalmente as decaídas. Os vendedores da morte agem despudoradamente, certos de não serem incomodados”. (Lavoura e Comércio, n. 2751, de 16/10/1924)

Trecho do Jornal Lavoura e Comércio do qual Orlando Ferreira comenta “Venda de Tóxicos”. (Lavoura e Comércio, n. 2751, de 16/10/1924). 

Fonte: FERREIRA, O. Terra Madrasta: um povo infeliz. Uberaba: O Triângulo, 1928.  p. 64 -65.
Resenha introdutória: Thiago Riccioppo 

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