Filmes Brasileiros: Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni
Por Guido Bilharinho
Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional, entre os quais Personalidades Uberabenses, recém lançado.
Cinema é mostrar (revelando) como os seres humanos
comportam-se, agem e relacionam-se uns com os outros e como e por que
comportamento, ação e relacionamento alteram-se ou alternam-se.
Tudo
isso, numa só obra, de uma vez ou apenas um ou alguns desses elementos,
elegidos, destacados ou enfatizados no ou do contexto em que se situam e no
qual se processam.
O
artista é livre para escolher ou optar como lhe aprouver por qualquer dessas
variantes e possíveis outras. A questão crucial, no caso, consiste e resume-se
na maneira de fazê-lo.
No
filme Porto das Caixas (1962), Paulo
César Saraceni (Rio de Janeiro/RJ, 1933-2012) focaliza o relacionamento de um
casal a partir de sua visceral incompatibilidade.
Paulo César Saraceni, diretor do filme Porto das Caixas, de 1962. |
Muita tinta correu e correrá e muitas obras foram e serão
escritas sobre o tema. Poucas, porém, tiveram (uma delas, a notável peça A Dança da Morte, 1901, de Strindbergh),
ou terão o poder e a propriedade destiladora do fel e da hostilidade que podem marcar
a desintegração do mais íntimo dos relacionamentos humanos. Talvez, por isso,
quando deteriorado, o mais acerbo e pungente.
Saraceni,
sobre argumento do romancista Lúcio Cardoso, baseado em fato real, coloca suas
personagens já na última fase do completo degringolamento de sua ligação.
E o
que mostra é o reverso da moeda, o oposto de tudo que leva um casal a se
associar na mais pessoal e total união possível entre dois seres humanos, já
que implica (ou deve implicar) num complexo de sentimentos, emoções e atração
mútuas que envolve possibilidades físicas, morais, intelectuais e emotivas
manifestadas com a intensidade e qualidade indispensáveis a impulsionar um para
o outro, de modo a se necessitarem,
completarem e bastarem.
Nada
há mais cruel, pois, do que casal constituído nesses termos, ou que assim deve
ter sido inicialmente constituído, cujo relacionamento deteriore-se a ponto do
sentimento amoroso transformar-se em rancor e ódio, a todo momento
exteriorizados em indiferença, desprezo e agressões verbais, quando não
físicas.
Saraceni,
com meticulosidade, paciência e adequação, joga suas personagens no vórtice
dessa erupção, sem deixá-las, porém, soltas ou desarticuladas. Com rigor (e
vigor) as coloca frente a frente no exíguo espaço de sua pobreza, observando-as
destilar o veneno de degradado relacionamento.
Reginaldo Farias e Irma Alvarez em cena do filme Porto das Caixas, 1962. |
Não
cogita nem se ocupa de sua vida pregressa e nem das causas e do lento processo
desse deterioramento. Apanha-o e o articula já no auge de seu desenvolvimento,
pejado de crueldade, amargura e hostilidade.
Esse microcosmo convivencial desenvolve-se em ambientação
precária e nua de quaisquer atrativos, que, por si e à parte, prefigura drama
paralelo que, no tempo e espaço fílmicos, vincula-se à tragédia humana,
perfazendo indissociável conjunto de aguda e agressiva aspereza e infelicidade.
A
imagem e seu conteúdo amalgamam-se numa mesma e dura matéria para, juntos,
comporem atroz quadro de aviltamento das relações humanas.
A
feiúra e a aridez dos décors, da
paisagem e das locações exteriores acompanham, refletem e compartilham a
natureza do drama humano que neles se desenrola. Por sua vez (e aí reside o
maior ou o grande mérito da realização), drama destituído de qualquer resquício
de espetacularização, já que mostrado na nudez de suas manifestações, tão
direta e objetivamente como se fosse (só) o olho da câmera a vê-lo e
acompanhá-lo.
Por
isso, não só as palavras e diálogos travados entre as personagens são
substantivos e essenciais, porém, tudo o mais, desde os décors, os elementos paisagísticos e materiais que os circundam
como também seus gestos, postura, atitudes e movimentos, além das expressões
faciais e tonalidades vocais.
Filme,
enfim, em que até a precariedade infra-estrutural contribui e compõe conjunto
para compatilizá-lo com a gravidade do drama humano e seu desenlace.
(do
livro Seis Cineastas Brasileiros, Uberaba, Instituto Triangulino de
Cultura, 2012)
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