Filmes Brasileiros: Porto das Caixas, de Paulo César Saraceni

Por Guido Bilharinho


Cinema é mostrar (revelando) como os seres humanos comportam-se, agem e relacionam-se uns com os outros e como e por que comportamento, ação e relacionamento alteram-se ou alternam-se.

Tudo isso, numa só obra, de uma vez ou apenas um ou alguns desses elementos, elegidos, destacados ou enfatizados no ou do contexto em que se situam e no qual se processam.

O artista é livre para escolher ou optar como lhe aprouver por qualquer dessas variantes e possíveis outras. A questão crucial, no caso, consiste e resume-se na maneira de fazê-lo.

No filme Porto das Caixas (1962), Paulo César Saraceni (Rio de Janeiro/RJ, 1933-2012) focaliza o relacionamento de um casal a partir de sua visceral incompatibilidade.

Paulo César Saraceni, diretor do filme Porto das Caixas, de 1962.
Muita tinta correu e correrá e muitas obras foram e serão escritas sobre o tema. Poucas, porém, tiveram (uma delas, a notável peça A Dança da Morte, 1901, de Strindbergh), ou terão o poder e a propriedade destiladora do fel e da hostilidade que podem marcar a desintegração do mais íntimo dos relacionamentos humanos. Talvez, por isso, quando deteriorado, o mais acerbo e pungente.

Saraceni, sobre argumento do romancista Lúcio Cardoso, baseado em fato real, coloca suas personagens já na última fase do completo degringolamento de sua ligação.

E o que mostra é o reverso da moeda, o oposto de tudo que leva um casal a se associar na mais pessoal e total união possível entre dois seres humanos, já que implica (ou deve implicar) num complexo de sentimentos, emoções e atração mútuas que envolve possibilidades físicas, morais, intelectuais e emotivas manifestadas com a intensidade e qualidade indispensáveis a impulsionar um para o outro, de modo a se necessitarem,  completarem e  bastarem.

Nada há mais cruel, pois, do que casal constituído nesses termos, ou que assim deve ter sido inicialmente constituído, cujo relacionamento deteriore-se a ponto do sentimento amoroso transformar-se em rancor e ódio, a todo momento exteriorizados em indiferença, desprezo e agressões verbais, quando não físicas.

Saraceni, com meticulosidade, paciência e adequação, joga suas personagens no vórtice dessa erupção, sem deixá-las, porém, soltas ou desarticuladas. Com rigor (e vigor) as coloca frente a frente no exíguo espaço de sua pobreza, observando-as destilar o veneno de degradado relacionamento.
Reginaldo Farias e Irma Alvarez em cena do filme Porto das Caixas, 1962.
Não cogita nem se ocupa de sua vida pregressa e nem das causas e do lento processo desse deterioramento. Apanha-o e o articula já no auge de seu desenvolvimento, pejado de crueldade, amargura e hostilidade.

Esse microcosmo convivencial desenvolve-se em ambientação precária e nua de quaisquer atrativos, que, por si e à parte, prefigura drama paralelo que, no tempo e espaço fílmicos, vincula-se à tragédia humana, perfazendo indissociável conjunto de aguda e agressiva aspereza e infelicidade.

A imagem e seu conteúdo amalgamam-se numa mesma e dura matéria para, juntos, comporem atroz quadro de aviltamento das relações humanas.

A feiúra e a aridez dos décors, da paisagem e das locações exteriores acompanham, refletem e compartilham a natureza do drama humano que neles se desenrola. Por sua vez (e aí reside o maior ou o grande mérito da realização), drama destituído de qualquer resquício de espetacularização, já que mostrado na nudez de suas manifestações, tão direta e objetivamente como se fosse (só) o olho da câmera a vê-lo e acompanhá-lo.

Por isso, não só as palavras e diálogos travados entre as personagens são substantivos e essenciais, porém, tudo o mais, desde os décors, os elementos paisagísticos e materiais que os circundam como também seus gestos, postura, atitudes e movimentos, além das expressões faciais e tonalidades vocais.

Filme, enfim, em que até a precariedade infra-estrutural contribui e compõe conjunto para compatilizá-lo com a gravidade do drama humano e seu desenlace.

(do livro Seis Cineastas Brasileiros, Uberaba, Instituto   Triangulino    de    Cultura,    2012)

 Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000 e autor de livros de literatura, cinema, história do Brasil e regional, entre os quais Personalidades Uberabenses, recém lançado.

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