Filmes do Irã
A CHAVE
Significado e Possibilidades
* Guido Bilharinho
Abbas Kiarostami
O cinema iraniano contemporâneo é um dos mais
vigorosos (e substanciosos) do mundo.
Na
natureza e na sociedade nada surge pronto e acabado (muito menos em sete dias,
mesmo que se não tome essa indicação periodista em seu sentido próprio e
estrito), subsistindo razões (ou pelo menos uma razão) para essa performance.
Fundamentando-a, impulsionando-a e dando-lhe conveniente substrato, têm-se
milênios de civilização estratificada e consolidada.
Se
em muitos e importantes aspectos, essa civilização, quanto aos costumes e à
tecnologia, não se atualizou, no cinema, ao contrário, atingiu patamar
universal, inclusive e principalmente por enraizado e mergulhado em seu pathos profundo.
Uma
de suas características fundamentais reside, pois, no contexto social que
embasa e condiciona os cineastas, que não só impõe como outorga à obra sua
essência. Além, portanto, da tradição cultural que os forma e informa,
encontram em seu meio, na sociedade a que pertencem e que os cerca, conteúdo e
sentido. Resta-lhes dar forma estética e captar-lhe natureza e significado,
reelaborando-os imageticamente. Sua obra, mercê da captura desses elementos,
consiste não em simples recriação ou reflexo de realidade, mas, em criação
artística.
Outra
das particularidades dessa cinematografia, estreitamente ligada a anterior,
traduz-se, ao mergulhar nos estratos e substratos da sociedade, na focalização
e articulação de seu cotidiano destituídas de qualquer conotação espetaculosa.
Assim,
substância humana e social e atos normais da vida embasam os espécimes mais
relevantes desse cinema.
É o
caso, entre outros, do filme A Chave
(Irã, 1986), de Ebrahim Forouzesh, com roteiro de cineasta Abbas Kiarostami.
Não
que o filme seja excepcional ou mesmo muito bom. Contudo, por força das
peculiaridades apontadas, integra a linhagem mais significativa do cinema
iraniano.
Nada
mais simples nem mais, em contrapartida, autêntico do que sua construção
ficcional e nem mais adequada a transmiti-la, tal qual se apresenta, do que sua
configuração cinematográfica.
À
simplicidade da abordagem temática corresponde linguagem apta a narrá-la. À
evidência, que essas singularidades impõem limites que impedem ao filme atingir
patamares superiores de criação artística. Todavia,
no espaço dessa conformação, o filme dimensiona e expõe, conquanto
naturalística e mimeticamente – sua restrição fundamental – coordenadas
essenciais.
Desprezando
a exploração sensacionalista, revela a verdade dos acontecimentos nas
possibilidades que abrem por si próprios tanto quanto por seu encadeamento. No
cinema comercial, o fato de criança de uns quatro ou cinco anos permanecer com
irmão de sete ou oito meses em apartamento fechado, compartilhando esse espaço
com panela de pressão num ligado fogão a gás enquanto sua mãe vai às compras,
desencadearia certamente sinistros e catástrofes facilmente imagináveis.
O
grande mérito de A Chave é cingir-se
aos atos das crianças, dimensionando-os apenas enquanto tais. Contudo,
nesse fazer, formata-os cinematograficamente de conformidade com o que
efetivamente são.
Na
confluência e obediência a essas linhas reside seu grande atributo, já que não
deixa que uma se sobreponha a outra, conduzindo-as simultânea e
equilibradamente, deflagrando permanente suspense por força de natural
apreensão.
A
qualidade mais relevante desse e dos filmes iranianos congêneres consiste na
fixação dos fatos da vida cotidiana em seu significado e perspectivas,
construídos concentrada e artisticamente, de modo a revelar o primeiro e
antever as últimas.
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Guido Bilharinho é advogado
atuante em Uberaba, editor da revista internacional de poesia Dimensão de
1980 a 2000 e autor de livros de literatura (poesia, ficção e crítica
literária), cinema (história e crítica), história do Brasil e regional.
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