Filmes do Irã: Gosto de Cereja, o mistério humano
O filme Gosto
de Cereja (Ta’m-E-Guilass, Irã, 1997), de Abbas Kiarostami (1940-2016), insere-se na linha de seriedade
temática, em que o conflito humano não constitui, como no filme comercial, mera
sucessão de fatos, acontecimentos, intrigalhadas e choques de interesses.
Porém, articula-se a partir da angústia existencial, radicalizando seus
efeitos. Não interessa ao cineasta a origem de sua causalidade, ou seja, a
motivação que a deflagra e a impulsiona até cristalizar-se na ação fílmica. Não
se evidenciam fatos e motivos, mas, atitudes e consequências. Seu foco de
interesse restringe-se, mas, simultaneamente, aprofunda-se no cerne da condição
humana. Não, porém, de sua problemática objetiva e física, na qual necessidades
materiais e orgânicas devam ser atendidas e satisfeitas. Mas, de seu íntimo
questionamento, centrado em sentimento angustioso de perplexidade, desencanto e
desespero existencial.
Ao
contrário do palavroso costume ocidental de excessivamente verbalizar estados
de espírito e convulsões emocionais, Kiarostami dispensa apelos explicativos e
elide manifestações justificativas.
Nada há
a expor e muito menos satisfação a dar em razão da determinação do
protagonista.
Nada
também a lamentar.
De
maneira direta, seca e discreta, a personagem reflete a gravidade de sua
decisão enquanto passeia sua angústia à procura de quem ultime as providências
que julga indispensáveis ao coroamento de seu gesto radical.
Apenas isso é o filme. Um homem à
procura de quem pratique rápida tarefa ou, como diz, lhe preste serviço bem
remunerado. Isso e o espanto e a reação que a proposta provoca, tal seu
inusitado e a maneira simples, direta e despida de emoção como é formulada.
Esse o
filme. Exposição e tratado da multiplicidade e perplexidade da conduta humana
guiada pela emoção e dirigida pela razão em comunhão de propósitos e meios de se
atingi-los.
Na
linguagem desataviada de Kiarostami, um indivíduo percorrendo com seu carro
estradas de terra. Nesse périplo fatídico, o rosto da personagem, o ato de
guiar, o chão encascalhado, as curvas meticulosas dos caminhos, o veículo e a
paisagem áspera assumem importância que transcende aspectos materiais e físicos
e mesmo aparências e funções específicas para - de per si ou reunidos ao
conjunto que formam por sua proximidade, contato e integração - comporem
elementos ativos e atuantes no contexto do drama humano de que constituem
palco.
Procede-se,
no caso, proficiente e eficaz associação de realidades humanas e subjetivas com
materiais objetivas, numa simbiose ao mesmo tempo dinâmica e angustiante,
ambas, contudo, secas e diretas como a exposta aridez da natureza, palco do
mistério humano.
Um
filme rigoroso e belo, contido e eficiente, no qual gestos, movimentos e
palavras articulam-se no ritmo adequado à captação do real, não apenas como
concreticidade física ou beleza imagética, mas, também, como puro exercício da
subjetividade humana.
Nele, o
que importa não são os fatos, mas, a possibilidade e a faculdade humana de
tomar decisões em todos os níveis e graus e, no caso, de dispor de seu próprio
ser. Ao mesmo tempo, filma-se a fragilidade ínsita nessa capacidade.
Contradição, todavia, só aparente, já que configura faces inséctis ou
inseparáveis da mesma moeda.
Habitualmente,
o propósito e o ato do protagonista quando incidentes na maioria das obras de
ficção constitui fuga da solução dos problemas. Aqui, é o problema.
______________
Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba, editor da
revista internacional de poesia Dimensão
de 1980 a 2000 e autor de livros de Literatura
(poesia, ficção e crítica literária), Cinema (história e crítica), História do
Brasil e regional.
Comentários