Epidemia de bexiga em Uberaba no século XIX
Muitas epidemias assolaram o mundo nos séculos XIX e XX
e provocaram o desaparecimento de aproximadamente 1/4 da população mundial.
Lepra, tuberculose e peste eram muito conhecidas na época.
Porém, nada destruiu mais do que a terrível varíola,
ou bexiga, como era conhecida popularmente. Segundo a infectologista do Hospital 9 de Julho de São Paulo, Sumire Sakabe, estima-se
que nos séculos XIX e XX, 300 a 500 milhões de pessoas tenham morrido
acometidas de varíola. Em 1967 foram 15 milhões de casos. Ela foi erradicada
mundialmente apenas em 1970, após campanha de imunização global sem precedentes,
realizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
A varíola é uma doença infectocontagiosa, provocada pelo vírus Orthopoxvirus variolae, da família Poxiviridae. Seus sintomas principais
são: febre intensa e bolhas purulentas por todo o corpo, levando as pessoas
infectadas, em geral, à morte, em pouco tempo. Como toda pandemia, ela também atingiu a cidade de
Uberaba no passado. A Câmara Municipal tentou retardar, diminuir ou mesmo
impedir a propagação dessa doença.
Durante o século XIX, o caminho que ligava Uberaba à
cidade de Franca era uma das principais estradas que conduziam tropeiros,
escravos, negociantes, migrantes e viajantes para o interior da cidade. Por
isso, era bastante vigiado pelas autoridades locais. Em relação aos correios, procedia-se
a desinfecção de caixas e malotes antes mesmo de chegarem à cidade, o que não
impediu a contaminação da população de Uberaba.
No ano de 1862, observando os primeiros casos de
contaminação pela varíola, os vereadores decidiram instalar um local específico
para internação e tratamento dos doentes, conhecido naquela época como Lazareto
(edifício isolado que servia para evitar o contágio). Tratava-se,
principalmente, de garantir um distanciamento das pessoas infectadas, impedindo
a evolução da epidemia. Nesse mesmo ano, a casa de Dorotheia Candida da Silva
foi transformada em Lazareto.
A Câmara Municipal gastou cerca de 25$000 reis para os
reparos no edifício e também abriu uma conta corrente devido às despesas com
atendentes, enfermeiros, médicos, remédios, vestuário, alimentação e higiene. Depois
de reformado e adaptado, o prédio se tornou em um pequeno hospital improvisado
e para lá foram transferidos os primeiros doentes da cidade, cuja tarefa de
transporte era realizada pela polícia.
A atuação do reverendo frei Eugênio Maria de Gênova se
destacava na ajuda aos enfermos, mesmo consciente dos perigos do contágio e da
letalidade da varíola. Ele ficou conhecido com protetor do Lazareto:
Ofício
de 20/11/1862 informando que é necessário no Lazareto um medico, por se encontrar
no Lazareto um afetado com sintomas graves, e que o Reverendo Frei Eugenio se
oferecera a ajudar no tratamento dos mesmos, deliberou a Camara para convidar o
Dr. José Modesto de Sousa. A Camara aceitou a oferta do Reverendo. (Livro nº
1, pg. 131v 20/11/1962)
A
evolução da epidemia foi rápida e a quantidade de infectados e de óbitos
cresceu em números expressivos no mês de novembro de 1862. Os doentes
encaminhados pelos parentes despediam-se deles na porta do Lazareto e, em geral,
pela última vez. Em caso de falecimento, a família não podia realizar o velório
do parente morto, sendo que a Câmara deliberou que os sepultamentos
acontecessem depois da meia-noite, quando não havia mais ninguém perambulando
nas ruas da cidade. Naquela época os cemitérios se localizavam em frente e ao
lado da Igreja (dentre os muros, quando havia).
Um
dos fatos mais significativos ficou registrado pelos vereadores em sessão da
Câmara depois que uma mulher, Honória Candida de Jesus, procurou ajuda para
encontrar o seu filho desaparecido. Pacientemente, o presidente da Câmara solicitou
uma consulta nos registros do Lazareto e obteve a confirmação, por meio de
ofício, que ele estava internado, contaminado pela varíola. Nesse caso, a mãe
não poderia mais vê-lo:
Oficio
do dia 19 de novembro de 1862 informando que foi recolhido no Lazareto o menor
Antonio Dias de Oliveira, filho legitimo da viuva Honória Candida de Jesus,
afetado por bexigas. (Livro nº 1 - pg. 133 - de 22/11/1862)
Naquela
época difundiu-se mundialmente o recurso de uma vacina conhecida como “pus
vaccina”. O nome provavelmente deriva-se da aplicação de anticorpos que
imunizariam a população. Diante dessa descoberta, os vereadores aprovaram
imediatamente a compra do medicamento e estabeleceram critérios para vacinar
toda a população, sob a orientação de um conselho responsável pela vacinação,
designado por eles.
De
acordo com registros da ata da Câmara Municipal de Uberaba:
Oficio
do Inspetor Municipal Suplente deste município, de 17 de novembro de 1862,
acompanhado da copia de um oficio do Comissario Vacinador de 17 de novembro de
1862, relativo a excelencia de pus vacinnador e de boa qualidade na Vila da
Bagagem, para que a Camara tome ciencia e proceda como convier, deliberou a
Camara que mandasse vir o pus por um positivo. (Livro nº 1 - pg. 133 - de
29/11/1862)
Oficio
do tenente Antonio Dimitrio Gonçalves, de 25 de novembro de 1862, informando
sobre as diligências relativas a vinda do pus vacinna vindo da Vila de Bagagem,
foi aprovado e o Presidente enviou ao Conselho Vacinador. (Livro nº 1 - pg.
133 - de 29/11/1862)
Os
farmacêuticos da cidade também ofereceram sua parcela de contribuição através
da distribuição de medicamentos gratuitamente à população enferma, como apoio
no combate ao flagelo.
Conforme
pode ser verificado na leitura das sessões posteriores, no mês de janeiro de
1863, a epidemia rapidamente foi erradicada e nesse mês não havia mais
notificação de contágio. Três fatores provavelmente contribuíram para a
erradicação da epidemia: isolamento, apoio da população, dos vereadores e a
eficácia da vacinação.
Para
celebrar a ocasião, como era costume da época, a sociedade uberabense reuniu-se
na Igreja Matriz, hoje Catedral, para agradecer a Deus pela superação desse
importante desafio:
O
vereador Penna propos que com o desaparecimento da epidemia de bexigas nessa
cidade, se cantasse na matriz da cidade um “Fedecum” em ação de graças ao ente
supremo pelo feliz desfecho de tão grave epidemia, convencendo o principal
protetor do Lazareto desta cidade, o Reverendo Frei Eugenio Maria de Genova, a
assistir a esse solene ato religioso, aprovado, que informe o reverendo e o
mais que for necessário fique a cargo do vereador Penna. (Livro nº1 - pp.
138v e 139)
Os políticos e a população de Uberaba deram exemplo de
determinação no combate à varíola; que talvez por isso tenha sido superada em
tão pouco tempo. Pelos livros da Câmara Municipal observa-se que a população uberabense
não cruzou os braços diante da doença, tendo lutado para ajudar as pessoas
contaminadas, evitando mais mortes e desgaste maior.
O passado abriu as suas páginas para o presente e
mostrou, como exemplo, a forma mais adequada para se enfrentar uma epidemia de caráter
devastador. Além disso, os vereadores da época demostraram que o sentimento pelo
sofrimento de uma única pessoa contagiou ainda mais do que a própria
epidemia.
Luiz Henrique Cellurale
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