RESISTÊNCIA E CULTURA: A LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL E AS PRÁTICAS AFRODESCENDENTES NO BRASIL

 




RESISTÊNCIA E CULTURA: A LUTA CONTRA A DISCRIMINAÇÃO RACIAL E AS PRÁTICAS AFRODESCENDENTES NO BRASIL

 

 

                                                                                                 João Eurípedes de Araújo

José Rodrigues de Resende Filho

                                                                                                                 Raquel Blancato

 

            Resumo

Este artigo discute a relevância do Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, celebrado em 21 de março, e sua relação com a história da luta contra o racismo no Brasil. Aborda-se o contexto histórico da resistência dos afrodescendentes, as transformações legislativas e um estudo de caso sobre um processo criminal envolvendo escravizados na cidade de Uberaba. O objetivo é evidenciar as formas de resistência dos africanos escravizados e suas manifestações culturais.

 

Introdução

O Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído pela ONU em 1966, rememora o massacre de Shaperville, ocorrido em 1960 na África do Sul. A data tem como propósito reforçar o combate ao preconceito racial em escala global. No Brasil, a luta contra a discriminação racial tem raízes históricas que remontam ao período colonial e avança com legislações fundamentais como a Lei Afonso Arinos (1951) e a Constituição Federal de 1988.

Este artigo visa discutir aspectos históricos da luta contra a discriminação racial no Brasil, destacando a importância da legislação e a resistência cultural dos povos afrodescendentes. O estudo de caso de um processo criminal em Uberaba, no século XIX, ilustra a força da identidade africana e suas manifestações culturais no período escravocrata.

 

A Evolução da Luta contra a Discriminação Racial no Brasil

A luta contra a discriminação racial no Brasil é marcada por uma história de resistência iniciada pelos escravizados durante o período colonial. A aprovação da Lei Afonso Arinos (Lei 1390/51) foi um marco inicial no reconhecimento legal da discriminação racial, tornando-a uma contravenção penal. Posteriormente, a Constituição de 1988 consolidou avanços ao estabelecer o racismo como crime inafiançável e imprescritível. A Lei 7716/89 ampliou a penalização a práticas discriminatórias em diversos setores da sociedade.

Essa movimentação legislativa foi influenciada pela Declaração Universal das Nações Unidas sobre a eliminação de todas as formas de discriminação racial de 1965.

 

“Discriminação Racial significa qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada na raça, a cor, ascendência, origem étnica ou nacional com a finalidade ou efeito de impedir ou dificultar o reconhecimento e exercício, em bases de igualdade, aos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou qualquer área de vida pública” (Artigo 1º da Declaração Universal das Nações Unidas sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial).[1]

 

 

Resistência Cultural e Religiosa dos Povos Africanos

A resistência dos africanos escravizados não se limitou às fugas e revoltas, mas também se manifestou em práticas culturais e religiosas que preservavam suas identidades. Historiadores como Jonis Freire e Robert Slenes destacam que os africanos levavam seus ancestrais consigo, independentemente de sua localização física, fortalecendo laços de sociabilidade dentro das senzalas. Um exemplo dessa resistência foi a "Mesa das Almas", um ritual espiritual realizado nas senzalas de Uberaba, demonstrando a continuidade das práticas religiosas africanas.

Em Uberaba?

A Superintendência do Arquivo Público de Uberaba é responsável pela guarda e preservação de um riquíssimo acervo. Entre os documentos encontramos feitos desse povo guerreiro, atores da história deste solo desde o século XIX.

Nesse dia 21 de março – Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, apresentamos aspectos de um processo criminal que mostram um tipo de resistência e de luta pela preservação cultural dos povos africanos que foram trazidos ao Brasil como escravizados.

Diz uma sura do Corão que Deus só imporá a cada alma o que ela puder suportar. Oxalá fosse sempre assim e cada criatura tivesse o seu quinhão de sofrimento ministrado, com parcimônia, por um Criador afeito ao cálculo cometido.[2]

 

Estudo de Caso: O Processo Criminal na Fazenda das Três Barras

Em 1858, um processo criminal registrou a acusação de envenenamento contra quatro escravizados na Fazenda das Três Barras, Uberaba. Os acusados, Domingos Africano (conhecido como Pai Domingos), Rita Crioula, Pedro Congo e Reginaldo Crioulo, foram identificados como praticantes de feitiçaria. Durante os interrogatórios, relataram a realização da "Mesa das Almas", rito espiritual conduzido nas noites de quinta e sexta-feira. O processo revela detalhes sobre a organização e o simbolismo desse ritual, evidenciando a manutenção de tradições religiosas africanas em meio à repressão escravocrata.

De acordo com o processo criminal de 08 de dezembro de 1858, faleceu repentinamente por envenenamento na fazenda das Três Barras, o tenente Francisco Ignacio da Silveira. Os acusados pela sua morte foram os escravizados e réus: Domingos africano, (conhecido como Pai Domingos), Rita Crioula, escravos de Antônio Alves Borges; Pedro escravo de Antônio Ignacio da Silveira e, Reginaldo escravo de Dona Maria Marcelina.[3]

            Abaixo parte transcrita do processo:

O Promotor Publico da Comarca em virtude que lhe faculta a Lei, vem perante Vossa Senhoria denunciar os fatos seguintes:

Aos 8 de dezembro de 1858, faleceu repentinamente em sua Fazenda o Tenente Francisco Ignacio da Silveira, e conduzindo-se seo corpo para ser sepultado no cemitério desta cidade, notou-se que achava-se ele completamente denegrido, que pondo uma porção de sangue pela boca em Um cão que passava bebendo instantaneamente morrera. Alega-se que a morte do Tenente Silveira proveio de substancias venenozas que lhe aplicarão. A voz publica endivida como autores deste assassinato a Reginaldo escravo que então era do dito Tenente Silveira e presentemente é de Dona Maria Marcelina de Tal, a Domingos e Ritta escrava de Antônio Alves Borges e a Pedro escravo de Antônio Ignacio da Silveira com esse procedimento o S. acuzado cometeo crime previsto no art. 1º da Lei de 10 de junho de 1835, e os outros reos o crime previsto no art. 192 da lei “criminal’.[4]

           

Os escravos foram acusados de assassinarem o senhor José Antônio da Silveira (vulgo Cazeca) com substâncias venenosas. No espaço de quatro anos na Fazenda do Barreiro outras quatro pessoas também apresentaram sintomas de envenenamento, sentindo dores terríveis, convulsões, alienação mental, sendo as seguintes pessoas: “Dona Maria; Tenente Ignacio da Silveira; Maria, filha do Coronel Alberto; Maria, filha de João Ignacio da Silveira e primo de Beralda, filha de Pio Ignacio da Silveira sendo os presentes de cima, iguais aos das outras vítimas”.[5]



Página inicial do processo criminal da Delegacia Policial. Autos Crime 1863 (Acervo: APU)

 

A Mesa das Almas

O ritual da "Mesa das Almas" era uma prática espiritual realizada pelos africanos escravizados e seus descendentes dentro das senzalas, especialmente durante as noites de quinta e sexta-feira. Segundo os registros do processo criminal, esse ritual envolve orações, cantos, símbolos desenhados no chão, uso de pólvora e raízes.

O objetivo principal da "Mesa das Almas" parece ter sido a comunicação com os ancestrais e a busca por proteção e justiça. A prática foi considerada "feitiçaria" pelos senhores de escravos e autoridades, sendo criminalizada e perseguida.

            Os escravos Domingos africano, Ritta Crioula, Pedro e Reginaldo, foram acusados de serem feiticeiros. Domingos africano era conhecido pelos seus companheiros de cativeiro como “Pai Domingos”.

Durante o interrogatório, os escravos Pai Domingos, Rita Crioula, Pedro e Reginaldo disseram que na sexta-feira durante a noite acontecia um ritual espiritual denominado “Mesa das Almas” dentro das senzalas da fazenda das Três Barras e o rito só terminava na madrugada antes da cantada do galo. Todos os escravos arrolados no processo em seus depoimentos confirmaram que essas práticas aconteciam e o responsável era o Pai Domingos africano. 

Os líderes da Irmandade das Almas eram o Pai Domingos africano e a sua mulher Ritta Crioula. Ritta relata em seu depoimento que estava casada com Pai Domingos a 8 anos. Pedro Congo e Reginaldo Crioulo eram os seus auxiliares.

A análise indica que os escravos Pai Domingos africano, Rita Crioula, Pedro Congo, Reginaldo Crioulo escravo já se conheciam a bom tempo. Existiam laços de solidariedade, sociabilidade e companheirismo aprimorados dentro da senzala através dos seus rituais sagrados.

            Pela análise do documento percebe-se que havia outros companheiros participando das reuniões da Irmandade da Mesa das Almas:

Domingos marido della interrogada depois que todos dormem e nas noites de quinta e sextas feira reunindose com Ella interrogada “Jero” e Pedro Escravos de Antônio Ignacio, José Carlos e sua mulher Anna de Tal, Gabriel liberto, sua mulher Messias e um seo filho de nome Mizael, Pai Francisco parceiro della interrogada, faz uma cruz no xão com pólvora sacode umas raízes em um pano branco canta Santo Antonio me ajude, são João Baptista me ajude e assim por diante falando ou chamando, Rainha Conga, Rainha Penha, cambonde estremece o corpo põe fogo na polvora da um pulo e fica esperniando como que esteja com “correntes” nesse então o cambonde que hé um dos que estão prezentes pega a falar= o que hé isso e batendo com a mão na cabeça delle elle fica quieto e depois da a todos caxaça com raiz raspada para beber e dismancha a meza =.[6]

 

               De acordo com a citação os cativos Jero e Pedro eram escravos de Antônio Ignacio da Silveira. Com relação aos escravos José Carlos e sua mulher Anna de Tal e Pai Francisco não há informação sobre quem eram os seus senhores. No processo não encontramos informação sobre a condição da família de Gabriel liberto, não sabemos se sua mulher Messias e um seu filho Mizael são libertos ou cativos.

            Com relação a Mesa das Almas, consta no processo criminal que:

[...] que elle faz meza ou reunião com sua mulher Ritta, Pedro e outros parceiros nas noites de quinta para sextas feiras muito tarde e recolhia essa meza antes de cantar o galo. Elle faz a meza na Senzala nestas noites e bem tarde e que e que se cahia antes do gallo cantar e que essa mesa hé para abrandar o coração de malfeitos, e que a mesa elle faz, fazendo primeiro com o dedo quatro cruzes no xão, e depois põe uma toalhinha branca em cima das cruzes, põe mais um montinho de pólvora no xão e em cada ponta da toalha, no meio umas raízes e depois canta o Ave Maria e estremecia o corpo convida cambonde (que há ajudante) Poe fogo na pólvora e elle que é o mestre da um pulo para cima com a fumaça de pólvora, e quando desse hé fazendo um ruge, ruge como roncos e então cambonde da lhe um tapa na cara para abrandar e então elle fica quieto, e depois rapa a raiz e bebem todos que estão prezentes e dismancha a meza antes do gallo cantar: disse mais que elle não sabe tudo mas que se soubesse elle acabava com todos os feiticeiros por quebravalhes todo o encanto [...][7]

               As informações contidas nesse processo criminal são de uma riqueza incomensurável, principalmente para aqueles que estudam as religiões de matriz africana. Mostram a realização de um culto ou ritual para abrandar o coração de malfeitos.

            A grande maioria dos brasileiros sabe da violência e das atrocidades que aconteceram no período escravocrata. Africanos e os afrodescendentes resistiram e resistem, nesse sentido, hoje Dia 21 de março – Dia Internacional da Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, a Superintendência do Arquivo Público de Uberaba, oferece essas informações para a comunidade uberabense.

 

 

Considerações Finais

O Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial é uma data de extrema importância que nos lembra da necessidade contínua de combater o racismo em todas as suas formas. A história da resistência afrodescendente no Brasil, desde o período colonial até os dias atuais, é marcada por lutas e conquistas significativas. A legislação, como a Lei Afonso Arinos e a Constituição de 1988, representa marcos importantes na criminalização do racismo e na promoção da igualdade.

O estudo de caso do processo criminal na Fazenda das Três Barras ilustra como os africanos escravizados mantiveram suas práticas culturais e religiosas, reforçando laços de solidariedade e resistência. Essas manifestações culturais não apenas preservaram a identidade africana, mas também contribuíram para a formação de uma sociedade mais diversa e rica culturalmente, prova disso são diversos terreiros de Candomblé e Umbanda que encontramos atualmente pelo Brasil.

Portanto, a memória histórica e a celebração de datas como o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial são fundamentais para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. É essencial que continuemos a promover o respeito e a valorização das diferenças, combatendo o racismo e todas as formas de discriminação.

Como Jonis Freire destaca: "Os africanos levavam seus ancestrais consigo, independentemente de sua localização física, fortalecendo laços de sociabilidade dentro das senzalas".

 

  

FONTE PRIMÁRIA

Processo Criminal da Secretaria da primeira vara criminal. Data 08 de dezembro de 1858. Caixa 20.

BIBLIOGRAFIA

 

FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1997.

SLENES, Robert W. Na Senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava, Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

FREIRE, Jonis. Escravidão e Família Escrava na Zona da Mata Mineira oitocentista. São Paulo: Alameda, 2014. 360p.

 



[2] FLORENTINO, Manolo; GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790 – c. 1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira 1997. p. 15.

[3] Secretaria da primeira vara criminal. Data 08 de dezembro de 1858. Caixa 20..

[4] Secretaria da primeira vara criminal. Data 08 de dezembro de 1858. Caixa 20. p. 2.

[5] Ibid., p. 2 verso.

[6] Ibid., p. 24 verso.

[7] Ibid., p. 21 verso.

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