INJUSTIÇA? RESISTÊNCIA DA MULHER ESCRAVA NA UBERABA OITOCENTISTA

 

SÉRIE ARTIGOS: “ACERVO REVISITADO: VESTÍGIOS, SINAIS E MARCAS DO PASSADO E DO PRESENTE”

 

A Superintendência do Arquivo Público de Uberaba, cuja finalidade é guardar e preservar documentos de valor legal, administrativo ou histórico, além de promover o conhecimento do acervo e o acesso a esses documentos, foi criada pela Lei Municipal nº 3656/85. Dezenove anos após a sua inauguração oficial, foi promulgada a Lei Delegada nº 7/2005, que a transformou em departamento da Fundação Cultural de Uberaba. Em 18 de junho de 2012, a Lei nº 11.446/2012 alterou dispositivos da Lei Delegada nº 5/2012 que “dispõe sobre a estrutura organizacional dos órgãos da administração direta do Poder Executivo”, e o Arquivo Público passou a integrar a estrutura da Secretaria de Administração, sendo transformado em Superintendência de Arquivos.

No aniversário de 40 anos de criação do Arquivo Público, temos muito a comemorar. Muito trabalho foi realizado no cuidado com os documentos da nossa cidade.

Contamos com uma equipe dedicada e comprometida com nossas atividades. A partir do trabalho da instituição inúmeras páginas da nossa história foram redigidas e fatos foram relatados a partir da análise dos documentos aqui custodiados. Temos orgulho do que fazemos em prol da sociedade uberabense.

Apresentamos o primeiro artigo de 2025, um texto que retrata a resistência da mulher na busca de justiça e de uma vida melhor. Escolhemos falar de uma escravizada que enfrentava um regime tirano e trabalhava em busca da sua liberdade.

 


 

 

INJUSTIÇA? RESISTÊNCIA DA MULHER ESCRAVA NA UBERABA OITOCENTISTA

 

João Eurípedes de Araújo – Historiador do Arquivo Público de Uberaba

José Rodrigues de Resende Filho – Superintendente do Arquivo Público de Uberaba

Raquel Blancato – servidora do Arquivo Público de Uberaba

 

O Arquivo Público de Uberaba (APU) custodia processos criminais datados de 12 de março de 1823 a 15 de dezembro de 1969, totalizando 7.567 processos. Ao analisar os processos criminais envolvendo escravizados na região do Sertão da Farinha Podre (atual região do Triângulo Mineiro), identificamos diversos delitos cometidos por escravizados africanos e crioulos contra senhores, feitores, capatazes ou administradores. Esses crimes são “frutos das tensões derivadas da disciplina do trabalho versus a resistência da mão-de-obra escrava” [1].

Entre os 571 processos criminais, no período de 19 de dezembro de 1837 a 21 de maio de 1888, destacam-se 137 documentos nos quais cativos aparecem indiciados como réus, referindo-se a crimes de sangue, lesões corporais, crimes contra o patrimônio e homicídios. É importante ressaltar que nem todos os processos criminais ocorridos na região durante o período oitocentista estão sob a guarda do APU. Outros processos estão preservados em diferentes acervos, enquanto muitos se perderam ao longo do tempo.


O Caso da Escravizada Floriana

Dez anos após a Freguesia de Santo Antônio e São Sebastião de Uberaba ter sido elevada à categoria de Vila, em 22 de fevereiro de 1836, a localidade passou a ser conhecida como Vila de Santo Antônio de Uberaba. No Largo da Matriz as pessoas brancas, livres, ricas e pobres contrastavam com escravizados africanos, crioulos e libertos que circulavam pelo centro da vila. Nesta época, a Vila estava em pleno desenvolvimento, sendo considerada um entreposto comercial da região do Sertão da Farinha Podre. Com o crescimento econômico e populacional, começaram a surgir a criminalidade e os delitos cometidos pela população.





Desenho bico-de-pena feito pelo artista e pintor uberabense Ovídio Fernandes, retratando o Largo da Matriz da Freguesia de Santo Antônio e São Sebastião de Uberaba. no século XIX.

 

Nesse texto analisaremos um processo de 1846 onde encontramos a denúncia contra a escrava africana Floriana de Nação, acusada de ter incendiado a casa do suplicante e vítima Flávio Bernardes Ferreira, em 1846. O juízo instaurou o processo e solicitou diligências para averiguar a situação do imóvel e danos causados. Foi criada uma comitiva de investigadores que se dirigiu a casa da vítima, que havia sido incendiada, “queimando se tudo quanto o suplicante possuía”. A sua casa era coberta de capim e o fogo queimou tudo, incluindo: “sella, ou barto, pratos arrebentados, butijas, garrafas e um monte de feijão ainda com fogo”.

  

Auto do corpo de delito, que mandou proceder o Meritissimo Delegado de Policia Antonio Manoel da Silveira sobre a queima em uma casa na forma da Petição como abaixo se declara.

Anno do Nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos quarenta e seis, vigesimo quinto da Independencia e do Imperio do Brazil aos vinte e um dias do mes de Setembro do dito anno, nesta Vila de Santo Antonio do Uberaba, Comarca do Paraná, Provincia de Minas Gerais, em o caminho que se segue para a chacara do Alferes Francisco Soares Ferreira, no suburbio desta Villa, onde se achava o Meretrissimo Delegado de Policia Antonio Manoel da Silveira Comigo Escrivão de seu cargo ao deante nomeado, e os Peritos nomeados José Cesário Rangel, e Antonio Lopes da Silva, e testemunhas, a bem de se formar o juramento Auto de Corpo de Delito direto; aos ditos Peritos e Meretissimo Juiz lhe deferiu juramento aos Santos Evangelhos em hum livro deles em forma, e lhe encarregou de sua e verdadeiramente debaixo de suas sans conciencia a bem de avaliarem a denuncia causado da causa digo e o causado na casa incendiada declarando alguns objetos queimados que mostrarem vestigios, e o valor do principal objecto. Eu recebido por eles o seu juramento debaixo do mesmo assim o prometterão cumprir; e paçando a examinarem, declararão unanimemente, que na estrada a que vai o Alferes Soares, acharão huma casa queimada, a qual fora coberta de capim, encontrando mais algumas coisas queimadas, que mostrava ser de sella, ou barto, pratos arrebentados, butijas, garrafas e um monte de feijão ainda com fogo; e avaloarão a casa unicamente queimada menos os objectos na quantia de quarenta mil reis, e mais não deram, e nem declararão e assignarão os ditos Peritos com o dito Delegado, e as testemunhas; Eu Luiz da Silva Guimaraens Escrivão da Delegacia e Primeiro Tabelião que a escrevi.

Silva.

Antonio Lopes da Silva

José Cesario Rangel

Testemunha Cassianno Gomes Rodriguez

Francisco José de Sallez[2]

 

No processo foram arroladas seis testemunhas: “1ª testemunha: Emerencianna Rosa de idade de 25 anos, vive de suas agencias, natural desta vila do Uberaba; 2ª testemunha: Leonora Matilde, casada de idade de 25 anos, natural desta vila, vive de suas agencias; 3ª testemunha: Maria Rodrigues Gomes, viúva, 39 anos, vive de suas agencias, natural de Santo Antônio da Casa Branca e, de presente moradora desta Vila do Uberaba; 4ª testemunha: Ricardo das Neves Martins, casado, 35 anos pouco mais ou menos, vive de um ofício de carpinteiro, natural de Santa Luzia do Sabará, e de presente morador nesta Vila; 5ª testemunha: Manoel Gualberto, casado, idade de dezenove para vinte anos, vive de roça, natural desta Vila do Uberaba, e de presente morador desta mesma Vila; 6ª testemunha: Joaquim Pereira de Salles, solteiro, de idade de 48 anos, jornaleiro, natural do Arraial do Claudio, Bispado de Mariana, e de presente morador desta Vila do Uberaba.”

            As testemunhas afirmaram que a escrava Floriana de Nação havia prometido queimar a casa da vítima. Um dos depoentes afirmou que ela prometeu queimar a casa antes do acontecido e que, após a queima, a escrava não apareceu mais naquela rua. Afirmaram também que o incêndio queimou “todos os trastes do dito Flavio, só escapando um par de chinelos e chapéu e, que somente no outro dia tirou o cano da espingarda que estava dentro da casa que se queimou”. Todas as testemunhas eram pessoas brancas, livres, com faixa etária dos 19 a 48 anos, e chama atenção que não constam depoimentos de nenhum cativo.


Quem era Floriana e o que ela disse?

Através do depoimento da ré, presente nos autos, retiramos algumas informações sobre sua vida. Ela respondeu que a sua idade era de 40 anos mais ou menos, nasceu na Costa da Mina e era escrava de Eufrásia dos Santos Maciel. Não sabia ler e nem escrever. Em seu relato a escrava indica que estava fora da Vila de Santo Antônio de Uberaba por recomendação da sua senhora.

Nas páginas 39 e 39 verso, as informações são tão ricas e interessantes que transcrevemos na integra:

“Contrariando o Libelo Crime acusatório diz a ré Floriana, escrava de Dona Eufrasia dos Santos Maciel, por elas e melhor forma de direito.

A ré disse que na noite do dia 18 para 19 de setembro do ano ao que teve lugar o incêndio da casa do autor, a ré Floriana escrava de Dona Eufrasia dos Santos Maciel se achava na casa de Anna Gertrudes, e até com um braço quebrado de umas pancadas, que o mesmo autor lhe dera como prova-se do documento junto.

Que não foi a ré quem pôs fogo na casa do autor, não só porque nessa noite não sairá da casa onde estava como porque, no estado em que se achava não podia cometer tal delito a que também se prova o documento junto.

E que tendo o autor ódio da ré, e acontecendo a noite queimar-se a sua casa descartou-se como a ré, para por esse meio vingar-se da ré.

Tanto assim que ele autor foi cometer a Anna Gertrudes para lavrar contra a ré e respondendo lhe Anna Gertrudes que o seu juramento lhe fazia mal por ter ela noite do acontecimento lidado com a ré até mais de meia noite e achá-la no seguinte dia deitada na cama em que a tinha posto, o autor calando-se nula mais palavrou e nem mais foi a casa de Anna Gertrudes, o que também se prova o documento junto.

Que a ré costuma alugar-se não só para serviços domésticos de casa, mas também para vender quitandas e dar alugueis a sua senhora e não cometer mal as pessoas.

E que a senhora da ré não apresentou quando comparesseo no juízo formador do calso foi porque o oficial de Justiça Anastacio de Tal nem lhe leu o mandado e nem avisou para ela comparecer em juízo, e por isso ignorando deixou de levar consigo a sua escrava.

E que se alega de dizer que se queimar toda a mobília do autor que na noite do acontecimento antes da queima o autor tirava uma caixa de roupa da casa para fora, como assim afirma o [...] do autor Leonor Matildes, em sua resposta.

Que na noite do acontecimento o autor estava pousando em casa de sua tia circunvizinha e não como foi arguido em o libelo do autor que chegando de sua viagem ficou nas ruas.

Que a senhora da ré não pôs de fuga a sua escrava, nem tal consentiria, mandava a ré sua escrava para pequena distancia desta Vila para tratar de sua saúde em casa particular de seu conhecimento.

 Segundo o exame de corpo de delito feito na escrava Floriana de Nação, informaram que o seu braço esquerdo entre o pulso e o cotovelo um pequeno ferimento com algumas contusões e que por isso resulta a grande inchação.

Outra contusão na cocha esquerda consegue ao quadril que por ela lhe afeta o andar livremente mostram essas feitas com instrumentos de pau, e por esta forma ouvirão eles peritos suas declarações”.

Encontramos outras manifestações de Floriana no processo, em especial trazemos à luz o depoimento constante na página 54:

- Foi perguntado para a ré se sabe quem incendiou as casas de Flávio Bernardes Ferreira.

Floriana de Nação respondeu que não sabia.

- E se nunca vira as casas incendiadas.

Respondeu que não foi ela que incendiou as casas e que nunca lá foi.

- Foi lhe perguntado, se ao menos por noticia não sabia o lugar onde erão citas essas casas.

Respondeu que nunca nisso o viu falar.

- Foi lhe perguntado se sabe porque comparece neste lugar.

Respondeu que de nada sabia. Nada mais disse e nem lhe foi perguntado.”

 


Processo criminal de 18 de setembro de 1846, página 54. (Acervo: APU).

  

Qual os desdobramentos da ação?

Encontramos na página 55 o resultado da ação:

Página: 55 verso – “A vista da decisão do Jury condeno a Ré Floriana africana a quinhentos açoites, depois do que será entregue a sua Senhora, que se obrigará a traze-la com um ferro ao pescoço por oito annos, e condenno a mesma Ré nos custos do processo. Salla das Sessões aos 23 de Janeiro de 1847”.

Temos a condenação da escravizada Floriana de Nação a uma pena severa de açoites e uso de ferros por um longo período.

 


Escravos com gargalheira. “Castigos imposto aos negros”, Jean-Baptiste Debret, aquarela, 1816-1831

 

Na página 60, já no fim do processo, há manifestação de Eufrazia dos Santos Macial pela soltura de Floriana. Tudo indica que a escrava cumpriu toda a pena imposta pela lei:

Diz Eufrazia dos Santos Macial, moradora nesta Vila do Uberaba, que pelo Custume junta-se colige, que a Escrava Floriana de Nação tem cumprido a pena que lhe foi imposta no Tribunal do Jury, requer, portanto, a Vossa Senhoria Se livra Ordenar a mandar propor Alvara de Sultura da dita Escrava em seus Termos.

Vistos rubricação

Uberaba 21 de setembro de 1856.

            A data acima foi a última que consta no processo criminal, ou seja, o processo teve o seu início em 18 de setembro de 1846 e finalizou no dia 21 de setembro de 1856. A escrava Floriana de Nação já havia cumprido todas as condenações, ou seja, tomado os 500 açoites e ter ficado com um ferro no pescoço durante oito anos.

            Dentre as várias curiosidades que encontramos nesse processo criminal, uma chamou nossa atenção:  Dona Eufrazia dos Santos Maciel, além de usufruir dos trabalhos da cativa, alugava os serviços dela para outros moradores. Porém o mais interessante é que a escrava também vendia quitandas nas diversas localidades da Vila de Santo Antônio de Uberaba. É possível que Floriana de Nação fosse também escrava de ganho, vendendo algum tipo de mercadoria, fato comum durante a escravidão brasileira, mas inédito na Vila de santo Antônio de Uberaba. Trata-se do primeiro registro que encontramos em fontes primarias sobre a existência de escravos de ganho nessas terras.


DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1816 – 1831). Edições Melhoramentos. Negras vendedoras de pó de café torrado. p. 59.

 

Por que esse caso precisa ser trago a discussão? 

A resistência à escravidão através do trabalho dos escravos de ganho não era uma forma direta de resistência, como as revoltas ou fugas, mas sim uma maneira de sobrevivência e, em alguns casos, de acumulação de recursos que poderiam ser usados para buscar a liberdade. Os escravos de ganho eram aqueles que realizavam serviços ocasionais nas cidades, como vendedores ambulantes, carregadores, ou prestavam serviços de ofícios específicos, como carpinteiros ou sapateiros. Esses escravos tinham mais liberdade para se movimentar e, em alguns casos, conseguiam juntar dinheiro para comprar sua própria liberdade, conhecida como alforria. No entanto, o valor necessário para a alforria era alto, e poucos conseguiam alcançar esse objetivo. Ainda assim, o trabalho de ganho permitia que alguns escravos desenvolvessem uma certa autonomia econômica, o que era uma forma indireta de resistir à opressão da escravidão.

A análise dos processos criminais envolvendo escravizados na região do Sertão da Farinha Podre revela a complexidade das relações sociais e de poder durante o período oitocentista. O caso da escravizada Floriana de Nação exemplifica a resistência e a luta pela sobrevivência em um contexto de extrema opressão. Apesar das adversidades, Floriana, uma mulher escravizada, encontrou maneiras de resistir, seja através do trabalho de ganho ou da tentativa de provar sua inocência perante a justiça da época. Este estudo não apenas ilumina a história de Uberaba, mas também contribui para a compreensão mais ampla da resistência escrava no Brasil. A história de Floriana e de tantos outros escravizados nos lembra da importância de preservar e estudar esses documentos históricos, para que possamos continuar a aprender e refletir sobre nosso passado.

 

           

FONTE PRIMÁRIA

Secretaria da 1ª Vara Criminal. Incêndio Praticado por Escravo. 18 de setembro de 1846. Caixa: 19. Nº 16. (Acervo: APU)

 

BIBLIOGRAFIA

DEBRET, Jean Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1816 – 1831). Edições Melhoramentos.

MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830 – 1888. Editora Brasiliense. Dividindo Opiniões Multiplicando Cultura 1987.

 

 

 



[1] MACHADO, Maria Helena Pereira Toledo. Crime e Escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas 1830 – 1888. Editora Brasiliense. Dividindo Opiniões Multiplicando Cultura 1987. p. 64.

[2] Secretaria da 1ª Vara Criminal. Incêndio Praticado por Escravo. 18 de setembro de 1846. Caixa: 19. Nº 16. (Acervo: APU)

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